Artigo escrito por Natália Mezera Araujo – Formação em Psicoterapia Psicanalítica – Instituto de Ensino Horizontes | Julho de 2018
Inicialmente descrito como algo perto da perversão, referindo-se a pessoa que trata seu corpo da mesma forma que um objeto sexual, o termo narcisismo passou por modificações até ser considerado como uma parte da libido que faz parte do curso normal do desenvolvimento sexual. Falar sobre narcisismo parece estar sempre beirando entre a normalidade e a patologia, entre o que nos identificamos e o que não nos pertence. Em uma sociedade tão adoecida como a atual, pensar em narcisismo e suas nuances nos aproxima da clínica e mais ainda, nos aproxima de nós mesmos.
No texto de 1914, Freud inicia a pensar no conceito de narcisismo através da esquizofrenia, que apresentava duas características fundamentais: megalomania e desvio de interesse do mundo externo. Em relação a essa última, questionava-se para onde iria essa libido que foi afastada dos objetos externos. A conclusão é que ela seria dirigida para o ego, sendo denominada dessa forma de narcisismo. Este o narcisismo secundário. Existe a ideia de uma libido original do ego, porém esse ego precisa ser desenvolvido e é inicialmente, como sabemos, um ego corporal, encontrando-se nessa fase num estado de auto-erotismo. Freud deixa claro que é preciso uma ação específica, a qual ele chama de nova ação psíquica, a fim de provocar o narcisismo. Este o narcisismo primário.
Seguindo o texto, Freud relata outros meios pelos quais é possível ter um conhecimento do narcisismo. São eles o estudo da doença orgânica, da hipocondria e da vida erótica dos sexos. Freud consegue nos aproximar do conceito através de questões cotidianas. Ao falar da doença orgânica, explica que todo interesse do mundo externo é retirado, uma vez que nada mais interessa além de seu sofrimento. Além disso, o interesse libidinal de seus objetos amorosos também é retirado: “enquanto sofre, deixa de amar” (Freud, 1914). Esse mecanismo é também explicado através do sono e dos sonhos. Vemos que não é preciso recorrer a grandes patologias para esclarecer o funcionamento de um conceito. Na hipocondria, tanto o interesse no mundo externo quanto a libido são retiradas e colocadas no órgão de sua atenção. Essa atenção, da qual provém as sensações aflitivas, não é baseada em mudanças demonstráveis, diferente do que ocorre na doença orgânica. Freud aproveita o conceito de hipocondria para supor que existe uma pequena dose desta também na neurose, uma vez que o órgão genital em seus estados de excitação pode ser considerado alterado, mas não doente. Dessa forma, podemos considerar a erogenicidade como uma característica de todos os órgãos, e para cada modificação nessa erogenicidade haveria uma modificação da catexia libidinal do ego.
Por último, entender o narcisismo é também entender a forma como nos relacionamos no amor. Freud explica que os instintos sexuais estão inicialmente ligados à satisfação dos instintos do ego, apenas depois que eles se tornam independentes. Sendo assim, os primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção; ou seja, sua mãe ou quem a substitua. Àquelas pessoas que baseiam sua escolha objetal nesses moldes, ou seja, em conformidade com a mãe que alimenta e o pai que protege, dá-se o nome de escolha anaclítica. Existe um outro tipo, aqueles indivíduos que por alguma razão seu desenvolvimento libidinal sofreu alguma perturbação e escolhem seus objetos amorosos não tendo sua mãe como modelo, mas eles próprios. Escolhem alguém que represente a si mesmo, ao que foi ou que gostariam de ser, denominando dessa forma a escolha objetal narcisista. Freud exemplifica esse tipo de escolha com os homossexuais.
O autor diferencia os tipos de escolha entre homens e mulheres. Com isso nos obriga a pensar no que pode haver de diferente nos dias de hoje e ficamos surpresos com o quanto de atual pode haver em um texto de 1914. Afirma que os homens tendem a fazer uma escolha objetal anaclítica, em que a supervalorização sexual originária do narcisismo da criança seria uma transferência desse narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização seria característica de uma pessoa apaixonada. As mulheres, por sua vez, sofrem uma intensificação do narcisismo original durante a puberdade, e isso, aliado às restrições sociais comum as mulheres, faz com que desenvolvam um autocontentamento e amem a si mesmas. Por isso, Freud afirma que a necessidade das mulheres está mais em serem amadas do que amar.
Por fim, de uma maneira muito bonita, Freud considera que para entender a teoria da libido que envolve o narcisismo é preciso apenas observar a atitude de pais para com seus filhos. Esse amor, agora transformado em amor objetal, mas que é no fundo tão infantil e comovente, trata-se na verdade, de um renascimento e reprodução do próprio narcisismo dos pais.
REFERÊNCIA: Freud, S. (1914/2010). Introdução ao Narcisimo. In Obras Completas, vol 12, Paulo César de Souza (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.