INCLUSÃO E CULTURA DEFICIENTE

Texto de: Marta Müller Stumpf

Imagino que a maioria de vocês conheça o conto “O Alienista” de Machado de Assis. Quem não leu, leia. Muito resumidamente, nesse irônico conto conhecemos a história do médico Simão Bacamarte, que decidiu seguir a profissão de psiquiatra em Itaguaí, junto de sua esposa Evarista. Ele monta na cidade uma espécie de hospício, com o nome de Casa Verde, onde busca analisar o homem e realizar suas pesquisas científicas, porém a população não recebe bem suas idéias e ele decide aprisionar os loucos, em determinado momento o médico passa a considerar todos loucos, inclusive sua própria esposa e por final ele mesmo.

Com o embasamento nessa literatura realista de Machado de Assis, farei algumas observações sobre a forma como a segregação atinge nossas vidas e como ainda temos “Itaguaís” pelo mundo. Quem representa o Dr. Simão Bacamarte e a Casa Verde no nosso cenário atual? Quem é nosso messias?

Davi Rodrigues, um excelente estudioso da educação inclusiva, sempre se refere a uma frase que penso muito: “A inclusão deve lidar com a diferença para que ela não origine a desigualdade social”. Essa frase é simples e complexa, pois reflete o direito multiplicador da inclusão, o desejo da diversidade, de educação para todos, que privilegie o lugar de fala de cada um. Na educação inclusiva precisamos contemplar 3 aspectos: – a primeira infância por sua importância; – os ambientes capacitantes e – a neuroplasticidade.

Pergunto a vocês: se a educação é para todos e a nossa sociedade tem que ser para todos também, como admitir a existência de uma “casa verde” nos dias de hoje? Escola especial não é inclusão, é segregação, uma casa que se destina a abrigar o diferente não é inclusão, é segregação, pois parte de uma visão de que posso ter mais mérito do que o outro, de avaliar ou classificar o outro e eu? para pensar…

Vamos a um pouco de história: desde o século XVIII as sociedades definiram as diferenças entre normal e anormal, o anormal era excluído,

escondido; no final do século XIX os transtornos mentais começaram a ser diagnosticados, como fazia Dr Simão, que classificava os loucos como furiosos e mansos, detentores de monomanias, delírios e alucinações diversas. No século XX surgiram os asilos, os depósitos de pessoas, como o “cárcere privado” chamado “Casa Verde”. A ciência se debatia em busca de classificações, Simão Bacamarte e o boticário também. Manuais procuravam respostas para as tais “coisas humanas”. Não havia explicação cartesiana para nenhuma dessas questões complexas do homem, nem na casa verde e nem hoje há. Estamos no século XXI e ainda hoje vemos abrigos de pessoas segregadas por uma sociedade que não acredita em equidade na teoria e na prática e ousam falar de meritocracia. Falta empatia, falta essa tal coisa humana… Davi Rodrigues fala em utopia, o que seria isso? Quem acredita em inclusão está falando de utopia? Utopia é esse não-lugar, esse farol que nos faz caminhar, uma esperança ativa.

Podemos pensar numa casa que promova saúde, na qual a diversidade seja respeitada, acolhida e valorizada; uma casa onde predomine a empatia, em que prevaleça uma ética do cuidado, como bem nos mostra Emmi Pikler, Sandor Ferenczi e todo o pessoal que promove saúde. Quem pode avaliar quem visita essa casa? Nessa casa ninguém fica, visita, não é um cárcere, mas uma casa que podemos visitar quando necessitamos ou desejamos. Nessa casa utópica não existe uma classificação de pessoas, existem seres humanos diferentes, como eu e você. Nessa casa as angústias do boticário tem escuta, tem auxílio, tem voz e tem vez, é uma casa para todos, o lema é: Nada sobre nós sem nós. Aprendemos juntos, colocamos metas juntos.

Quando penso em Sandor Ferenczi e no processo da inclusão, sempre vem em minha mente alguns textos de sua obra: o Adestramento de um cavalo selvagem de 1916, Adaptação da Família à Criança de 1928 e A Criança mal acolhida e sua pulsão de morte de 1929.

Em Adestramento de um cavalo selvagem o autor traz a questão sobre como domesticar um ser, faz uma analogia do adestramento com as relações parentais abusivas e como nessas relações os cuidadores utilizam métodos que oscilam entre doçura e intimidação, contendo uma dupla mensagem que captura o sujeito. Nesse curto capítulo Ferenczi traz a ideia de que um ser humano submetido, no decorrer de sua infância, a esses excessos de ternura

e intimidação, corre o risco de perder para sempre a capacidade de agir com independência. Essas crianças domesticadas seriam mais tarde os sujeitos sempre receptivos à sugestão parental e também a maioria dos neuróticos. Podemos questionar se, no modelo médico de reabilitação, não há um manejo de submissão das pessoas com deficiência, como os loucos mansos de Simão Bacamarte, e não uma relação e ambiente que acolham e promovam saúde de fato. Para além das deficiências temos que pensar num modelo de saúde que proporcione socialização sem alienação e que opere orientação sem oposição repressiva.

Em Adaptação da família à criança Ferenczi (1928) nos evoca a pensar o quanto a família deve se adaptar à criança e não o contrário, como costuma ocorrer. Escreve que a psicanálise deve às crianças uma melhor compreensão e que os cuidadores devem se compreender melhor também, pois, segundo o provérbio alemão citado por ele, tornar-se pai é mais fácil do que ser. Para o autor, a falta de apreensão da própria infância é o maior obstáculo que impede os cuidadores de compreenderem as questões essenciais da educação. A passagem da primeira infância primitiva à civilização pode ser traumática quando cuidadores não lidam bem com suas próprias questões. As dificuldades de adaptação das crianças estão intimamente ligadas ao seu desenvolvimento sexual e na relação de dependência com seu meio circundante. Há uma identificação com a autoridade que pune, abusa, maltrata ou desampara e cada criança estabelece dentro de si pais e mães interiores.

No texto A Criança Mal Acolhida e sua pulsão de morte de 1929 Ferenczi nos faz refletir sobre o quanto crianças que foram hóspedes não bem-vindos na família irão registrar esses sinais de aversão, impaciência e pouco amor repercutindo na vontade de morrer, perdendo o gosto pela vida muito precocemente. O brilhante autor já considerava a importância fundamental do ambiente no decorrer desse processo de adaptação da família à criança, ele diz: “A criança deve ser levada, por um prodigioso dispêndio de amor, de ternura e de cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual era a sua intenção, pois, caso contrário, as pulsões de destruição logo entram em ação”.

Na mesma Hungria de Ferenczi temos a pediatra Emmi Pikler e seu trabalho lindo com as crianças abandonadas no período pós guerra que foram

acolhidas no instituto Lóczy. A recuperação da condição humana como sujeito de suas emoções, movimentos e interações mudou o destino das crianças que passaram por lá e que ainda passam pelo instituto. Ainda hoje vemos que essa condição humana de sujeito é esquecida quando as crianças são meramente submetidas e adaptadas à sociedade enquanto a sociedade deve se adaptar a cada criança e sua peculiaridade. Precisamos cada vez mais estar atentos a essa ética do cuidado.

A leitura de “O Alienista” nos evoca a pensar também na forma perversa e trágica de obtenção de poder que a sociedade impõe. Freud e Foucault e suas obras geniais sobre a cultura sempre nos evocaram a pensar: Por que a diferença incomoda tanto? Desde 1919 em seu texto O Estranho, Freud nos faz pensar sobre a inquietação que o outro nos causa, o que tem de mim no outro, nesse sentir algo que é ao mesmo tempo estranho e familiar, nesse grande desafio do reconhecimento do eu como diferente do outro.

Foucault sempre se viu desafiado pelo tema da exclusão e esse mecanismo da nossa cultura ocidental que separa normalidade e anormalidade, interrogou saberes e poderes que traçam nosso discurso.

Desde a exclusão, segregação, integração até chegar à luz do farol da inclusão temos um longo caminho; esse processo requer força, potência, criatividade, humanidade, conhecimento e uma esperança ativa. Saber é poder…

Sabemos que assim como o racismo é estrutural, todo e qualquer tipo de exclusão é estrutural também, vivemos numa sociedade estruturalmente capacitista, preconceituosa, não há cura para o diferente, há sim relações e vivências que potencializam as pessoas e assim todos sofrem menos, ganham todos.

Não precisamos de corpos dóceis (loucos mansos como classificaria Dr Simão) precisamos de um modelo biopsicossocial para todos e da nossa luta por acessibilidade e promoção de saúde, porque de perto ninguém é normal.

Para encerrar cito uma frase de Andrew Solomon em seu brilhante livro “Longe da Árvore” de 2013:

“A paternidade nos joga abruptamente em uma relação permanente com um estranho, e quanto mais alheio o estranho, mais forte a sensação de negatividade. Contamos com a garantia de ver no rosto de nossos filhos

que não vamos morrer. Filhos cuja característica definidora aniquila a fantasia de imortalidade são um insulto em particular, devemos amá-los por si mesmos, e não pelo amor de nós mesmo neles, e isso é muito mais difícil de fazer. Amar os nossos filhos é um exercício para a imaginação”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Diniz, Débora. O que é deficiência. Ed: Brasiliense. SP. 2021

Falk, Judith (org). Educar os três primeiros anos: a experiência Pikler-Lóczy. Ed: Pedro e João editores. SP. 2021

Foucault, M. Microfísica do Poder. Ed: Paz & Terra. SP. 2021

Freud. O estranho. 1919. Obras Completas. vol XVII. Ed: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.

Ferenczi, S. (1913a). Adestramento de um cavalo selvagem. In S. Ferenczi (Vol. 2). SP. Ed: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1916).

Ferenczi, S. (1992b). Adaptação da família à criança. In S. Ferenczi, Psicanálise

IV. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1928)

Ferenczi, S. (1992). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In S. Ferenczi Psicanálise IV (A. Cabral, trad., pp. 47-52). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1929)

Machado de Assis. O Alienista. Ed: Cobogô. SP. 2020

Appell,G., David, M. Maternidade insólita. Ed: omnisciência. SP 2021.

Rodrigues, D. Inclusão e Educação: Doze Olhares Sobre a Educação Inclusiva. Ed: Summus. SP. 2006

Solomon, A. Longe da Árvore. Ed: Companhia das Letras. SP. 2013.