“Os retirantes “ de Cândido Portinari: o esforço para ser humano é o que nos torna vivos

Cleuza Mara Lourenço Perrini

Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vivemos ao mesmo tempo a beleza e a morte. Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o violento e seu desaparecimento? Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem. (Muriel Barbery, 2008, p. 293)

Perda e recuperação
Em tempos onde os imigrantes são considerados persona non grata em quase todo o mundo, nunca Portinari esteve tão atual na sua arte de “Os retirantes”.
Todos nós somos retirantes após a cesura do nascimento, quando excluídos pisamos nesta terra pós-mundo uterino. Sere- mos eternos imigrantes em busca da terra prometida.
Nos estados primitivos da mente, os processos de (des)inte- gração são caracterizados por experiências recorrentes de perda e recuperação (Klein, 1957/2006). O sentimento de “estar perdi- do” é equivalente ao medo da morte. A perda do objeto externo, como a pátria mãe, o chão que habita e é habitado, desempenha um papel na solidão ao longo da vida. A dor que acompanha os processos de integração contribui também para a solidão, intensificada na vivência da posição depressiva. Junto à desinte- gração, ao aniquilamento e à cisão, existe desde o início da vida humana à natural tendência à integração.
Se nos remontarmos aos primórdios da espécie e ao nosso parentesco com os peixes, tão bem expresso por Ferenczi em Thalassa (1924/2011), proponho que Portinari retrata a saída da vida intrauterina, em parte pelo conhecimento filogenético inconsciente de descendermos de vertebrados aquáticos e que nos denomina retirantes. A tela expressa essa dor da passa- gem da vida aquática para a seca paisagem, nos obrigando à sobrevivência e à adaptação a uma vida terrestre que exige res- pirabilidade através dos nossos próprios pulmões.
Nesse sentido, o simbolismo marinho da mãe pos- sui um caráter mais arcaico, mais primitivo, ao passo que o simbolismo da terra reproduz aquele período mais tardio em que o peixe, lançado à terra em consequência da secagem dos mares, tinha de se contentar com a água que se filtrava desde as profundezas do subsolo (o qual, ao mesmo tempo, o alimentava). (Ferenczi, 1924/2011, p. 317)
Avento que Portinari, ao pintar uma família pródiga com seis filhos, retrata a fertilidade do casal, algo como uma busca talâmi- ca do mundo intrauterino vivido através da relação sexual. Esse “retorno temporário” (Ferenczi, 1924/2011) ao seio materno, a repetição dos perigos inerentes ao nascimento, a luta e a adapta- ção à vida nos enternece em sua pintura. O coito se encarrega por si só da satisfação do corpo, de amenizar os traumas vividos no decorrer da própria existência humana, com potência e superação. Os retirantes passam a ser a expressão da luta ancestral humana após a “catástrofe da seca” – vida extrauterina, vida severina.
A posse de verdadeiros órgãos genitais, o desenvol- vimento no interior do corpo materno e a sobre- vivência à grande catástrofe da seca dos oceanos constituem, portanto, uma entidade biológica inse- parável; poder-se-ia ver nisso a causa fundamental da identidade simbólica que existe entre o ventre materno, o oceano e a terra, por uma parte, en- tre o membro viril, a criança e o peixe, por outra. (Ferenczi, 1924/2011, p. 319).

O sentimento de morte
“O esforço de se tornar humano está entre as poucas coisas da vida humana que pode ser mais importante para a pessoa do que a sobrevivência” (Ogden, 2013, p. 31).
O material psicanalítico corrobora para nos apontar essa busca incessante.
M: “Meu marido me matou ao me trair, acabou com tudo que tínhamos, sou uma morta. Me libere das sessões, basta uma por semana…”, me diz Maria.

C: “Do que você espera se liberar?”
M: “Dessa dor”( e aperta o peito constrita).
C: “Então você está viva… sofrendo muito, muito! E estou aqui com você nesta dor.”
M: “Eu estou doente… em pedaços… e para esse mal não há cura… queria apagar tudo… acreditar que nada disso aconteceu comigo…”

A lua cheia e os corvos
Os retirantes, ocupantes do espaço todo da tela, mal nos permi- tem notar a lua cheia e escura e a profusão de corvos no céu, em vez de estrelas.
A lua cheia, comumente associada à anunciação de tempos de loucura no homem e uivos nos animais, também “correspon- de à Grande Mãe”. A lua que resplandece no céu era vivida na Antiguidade como sinal de plenitude e fertilidade, benéfica para toda a natureza e especialmente fecunda para a psique feminina. Quando a lua concluía a última fase e desaparecia, “realizava-se a dramática Lua Negra, a ausente, passando a ser o demônio da obscuridade” (Sicuteri, 1986 p. 61). Proponho assim que a lua negra de Portinari revela, na tela, a obscuridade da vida sofrida, tão difícil de ser dita em palavras, quanto de a vermos desenhada.
O corvo simboliza a morte, a solidão, o azar, o mal presságio. Por outro lado, pode simbolizar a astúcia, a cura, a sabedoria, a fertilidade, a esperança. Essa ave está associada ao profano, à magia, à bruxaria e à metamorfose.
É recente a associação do corvo com o mau agouro, a morte, o azar. Entretanto muitas culturas acreditam que essa ave mística simboliza aspectos positivos, como por exemplo, para os ameríndios simboliza a criatividade e o sol; para os chineses e japoneses o corvo simboliza a gratidão, o amor familiar, o mensageiro divino que representa o bom presságio2.
Em algumas tradições africanas e nativas americanas, o cor- vo é um guia benevolente cuja visão aguçada lhe permite enviar alertas aos viventes e que também orienta os mortos em sua jornada final. Dá para acreditar que essas aves, essa lua negra (Sicuteri, 1986), podem ser reveladoras da luz, do sol e do renascimento? É possível considerar que uma traição conjugal é capaz deanunciar novos ventos em uma relação falida, primeiramente consigo mesma, cindida, em pedaços? São 33 corvos e noveso- breviventes em pinturas triangulares, influência de Picasso sobre Portinari, que ficou impressionado com a “Guernica”. As pes- soas dispostas em três: avô, neta e neto; mãe bebê e outro filho; pai, filha e filho e a barriga evidenciando uma nova gravidez. Pessoas férteis e famintas. Olhos que não enxergam… ou veem tudo. É a luta dos retirantes por um mundo novo. Sozinhos, profundamente sós, em terreno árido de água e de semelhantes. O silêncio dos retirantes expressa o anseio insatisfeito pela bus- ca de uma compreensão sem palavras, alimentando ainda mais o sentimento de solidão, por não encontrarem mais a relação primeira (habitualmente a mãe), quando o contato íntimo de
inconsciente para inconsciente era também sem palavras.

Reunir-se em um lugar para se tornar inteiro.

Poderíamos dizer que Portinari agrupa a família em um holding físico para dar a dimensão do emocional em curso e acolher, como Winnicott aponta, mencionado por Ogden (2013), a dor dos retirantes, reunindo-os em um lugar para os tornar intei- ros. Os retirantes podem assim, nessa experiência comunicada como um fenômeno transicional, ser uma faceta do processo de internalização da função materna de sustentar uma situação emocional no tempo. Essa área entre a fantasia e a realidade, apontada por Winnicott como a raiz do simbolismo no tempo e na vida experenciada, Portinari permite que a vivenciemoscomo um processo de internalização do ambiente agreste e árido e das relações humanas quando se sustentam a partir do real interno e externo. E “o espaço mental e a capacidade de pensar são cria- dos pela estrutura que permite separação e ligação entre obje- tos internos e self e outros, ao invés de fusão ou fragmentação” (Breen, 1996, p.105).
Se é viável pensarmos que o reunir pode significar “tornar-se inteiro”, a pintura de Portinari, bem como meu encontro com a paciente, que disse “para o meu mal não há cura”, me evocam a cura como possibilidade. A palavra cura vem da raiz latina cura (Cunha, 1986, p. 234), cuidado. E cuidar se origina de cogitare (Ferenczi, 1924/2011), cogitar, imaginar, pensar, tratar de, dar atenção a, ter cuidado com… Partilho a música “A cura”, do Lulu Santos, que emergiu na sessão com a paciente supracitada, em quea letra trouxe novos significados ao nosso caminhar psicanalítico.

🎵
A CURA
Existirá
Em todo porto tremulará

A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará

Uma ponta de esperança
E se virá
Será quando menos se esperar

Da onde ninguém imagina

Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra
Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir de vez a noção

Na qual se crê
Que o inferno é aqui
Existirá
E toda raça então experimentará

Para todo mal, a cura 🎵


Na última estrofe da melodia que canta – para todo mal, a cura –, o “a” não é com “h”, de existir. Conjecturamos, Maria e eu, que para todo mal há a possibilidade do cuidado humano. E, ao invés do afastamento pedido através da diminuição do nú- mero de sessões, cogitamos (de onde se origina a palavra cuidar) que a confirmação deste asseguraria sua falência e seu desfazi- mento como pessoa inteira. Nossa caminhada continua. Recen- temente, com maior número de sessões, temos dado vazão aos seus pesadelos prenhes de maus agouros, até então revestidos por uma pseudossegurança expressa no seu modo de ser auto- ritário, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, tanto no trabalho como em suas relações afetivas. Esse modo opressivo e opressor já estava presente na vinheta anteriormente relatada, quando me pediu para que a liberasse das demais sessões. Temos reunido e procurado sustentar em um holding real interno e ex- terno, migrando e imigrando pelos estados primitivos da mente humana, que lhe permite sair do “ai, ai, ai” contido na epígrafe deste trabalho e ir para o “e aí…” que anuncia possibilidades de movimento e de busca.
A “cura” da incompletude Portinari colocou em tela. Eu co- loco, em palavras associativas sonhantes, a busca da cura como cuidado, com base na esperança realista, no próprio limite da liberdade e na resiliência que é do ser humano vivo que vai além do simplesmente viver.