Três Estranhos Idênticos

Artigo escrito por Marta Müller StumpfPsicóloga clínica, Psicoterapeuta Psicanalítica especialista em Infância e Adolescência e Psicanálise das Configurações Familiares

O documentário – Três Estranhos Idênticos – conta a história de trigêmeos separados aos 6 meses no subúrbio de Nova Iorque, em 1961. Entregues pela mãe biológica a um orfanato da comunidade judaica. Eles sabiam que eram adotados, mas não que tinham irmãos, e suas famílias também não sabiam que eram gêmeos separados.

Por uma coincidência um dos gêmeos vai estudar numa universidade e começam a agir com ele como se já o conhecessem. O rapaz descobre que tem um irmão e mais adiante o terceiro irmão os encontra ao vê-los numa matéria de reencontro no jornal.

Esses fatos ocorrem em 1980, quando eles estão com 19 anos e a história surpreendente não para por aí… eles ainda vem a saber que foram vítimas de uma experiência, por um psiquiatra austríaco e sua equipe que queria entender o que mais afetava o ser humano ao longo do seu desenvolvimento, a genética ou o ambiente.

Testados com frequência em suas casas, realizavam testes justificando pesquisa sobre adoção. Uma experiência que flerta com o nazismo e que aconteceu com inúmeros bebês. Ainda há muitos Roberts, Davis e Eddys espalhados por aí…

Além da história inicial desses irmãos, há uma exploração midiática, que para eles essa exposição talvez se confunda com a necessidade de mostrar e legitimar o encantamento de um pelo outro, encontrando semelhanças entre eles, restaurando esse elo roubado por algo que se diz ciência. “Ciência sin conciencia (ética) es una ruina”, escreveu Regina Bayo-Borràs Falcón.

Não podemos mensurar o quão intenso é descobrir que temos irmãos gêmeos e os reencontrar quase 19 anos depois.

O trauma está posto, intrapsíquico e ambiental, como nos lembra Ferenczi na sua retomada à teoria do trauma. Esse
trauma ocasiona questões de falha identitária, que fica tão explícita com o suicídio de um dos irmãos antes de saber toda verdade.

Sabe-se que gêmeos interagem desde a décima quarta semana de gestação e essa interação justifica o fato de que, apesar de terem DNA idênticos, eles possuem impressões digitais distintas, justamente por essa interação, por essas
marcas que ficam em suas mãos e, logicamente, em suas vidas.

Os trigêmeos do documentário são idênticos, ou semelhantes, como preferia chamar Winnicott, eles coabitaram o mesmo ambiente, sem fronteiras, durante o período gestacional. Os três conviveram os primeiros meses juntos, antes de serem adotados por famílias distintas, e enfrentam o desmentido do fato deles serem gêmeos.

Muitas são as variáveis para pensarmos o quão complexa foi essa descoberta, o processo de se conhecerem e reconhecerem, o ápice do reencontro, a separação inicial, o luto por tudo que não viveram, a ambivalência, as fantasias, a culpa em relação às famílias adotantes.

Podemos pensar em três identidades roubadas e, mesmo que eles tenham sido acolhidos com amor pelas famílias adotivas, e parece que foram, nada suprime a verdadeira história originária.

Na observação de Freud geralmente um dos gêmeos encontra uma saída mais melancólica do que o outro, renunciando a competição, a disputa ou a conquista de um lugar de poder, tanto na relação entre irmãos como para com os pais, aspecto que, provavelmente, fora agravado nessa relação entre os trigêmeos, que chegaram a empreender juntos um restaurante chamado Triplets. Teriam eles, em função da complexidade dessa história, não suportado essa relação?

Em O Estranho, Freud já nos convidava a pensar sobre o grande desafio do reconhecimento do eu como diferente do outro, sendo o duplo uma garantia contra o desaparecimento do eu, uma garantia de imortalidade inicialmente, mas após uma ameaça de morte.

Nossa maior referência de duplo é a mãe e para os gêmeos essa questão se torna ainda mais complexa, pois o irmão se apresenta também como um duplo, um outro “si mesmo”, principalmente no caso de gêmeos univitelinos ou
idênticos (que nunca são). Para Freud, a permanência numa relação que predomina a fusão levaria a uma espécie de morte, de não constituição da singularidade. Eddy veio a cometer suicídio, Robert e Davi se distanciaram, tendo grande resistência a aceitar o convite para o documentário.

Monique Bydlowski descreve uma uma sintonia afetiva durante a gestação, que chama de transparência psíquica. É um estado psíquico particular, com maior abertura e permeabilidade entre inconscientes. Os gêmeos possuem uma sintonia particular, o famoso poder da dupla, eles apresentam uma sintonia diferenciada em relação a outras relações fraternas.

Paradoxalmente é um grande desafio para um gêmeo se reconhecer como outro, como diferente, conquistar um lugar próprio no desejo dos pais, na família e na sociedade. Interessante pensar nesses trigêmeos que viveram distantes, que nem sabiam da existência desses irmãos, mas que tinham hábitos semelhantes, o que é muito comum nos univitelinos.

Também há casos em que um gêmeo perde o irmão no início da vida e sente uma intensa angústia que se manifesta através de sintomas.

Kancyper apud Kupermann (2018) nos evoca a pensar que a relação gemelar possui uma potencialidade traumática, uma vez que eles dividem tudo desde a barriga, principalmente no que se refere a constituição da identidade do sujeito, a forma como irão lidar com suas diferenças e semelhanças. Essa relação também possui uma potencialidade empática, como nos sentimentos de empoderamento, de onipotência da dupla.

Em ambas as situações o “umbigo” não foi costurado, restando uma lesão aberta, sendo esse o umbigo da pesquisa clínica em psicanálise. Podemos pensar que para os trigêmeos tenha sido uma experiência de muitas rupturas, que os levaram a sonhar com uma fantasia de completude não suportada pela realidade, sendo todo o processo que passaram muito traumático, suas identidades roubadas por um processo de desmentida, em nome de uma ciência perversa, que descarta o inconsciente.

Como ser, se constituir sujeito, apropriado de sua identidade, com uma história tão fragmentada? Podemos pensar, como escreve Silvia Gomel, que estamos em eterna construção, cada vínculo que construímos durante a vida
interfere na construção de nossa subjetividade. Sempre há esperança.


Referências Bibliográficas

  • Bydlowski, M. & Golse, B. (2002). Da Transparência Psíquica à Preocupação
  • Materna Primária: uma via de objetalização. Brasília. Ed: L.G.E.
  • Freud. Obras Completas. 1920. A Psicogênese de um caso de homossexualismo
  • numa mulher. RJ. Ed: Imago, v. XVIII
  • Freud. Obras Completas. 1919. O Estranho. Rio de Janeiro. Ed: Imago, v. XVII.
  • Gomel, S. 2020. Familia, parejas, analistas: la escena clínica. BsAs. Ed: Lugar
  • Editorial.
  • Morgenstern, A; Gueller, A & cols. Atendimento Psicanalítico de Gêmeos. SP. Ed:
  • Zagodoni, 2018.
  • Regina Bayo-Borras Falcòn. Édipo Frankenstein.
  • Winnicott. A Criança e seu mundo. Capítulo 21.RJ. Zahar editores, 1966