Apresentação escrita por Josiane Weiss
Livro organizado por Renata Viola Vives
Olho para trás, para a história da humanidade. O Homo Erectus foi capaz de revolucionar seu tempo ao produzir facas e ferramentas feitas de lascas de pedras. Quatrocentos mil anos atrás começam a surgir os Neandertais, que as aperfeiçoam e começam a se deslocar pela Europa e Ásia. Diferenciando-se destes, em torno de trezentos mil anos atrás o Homo sapiens aparece na África e só a 50 mil anos atrás chega à Europa. O Homo Sapiens evoluiu a um tal grau de sofisticação cognitiva que lhe permitiu conquistar e dominar o mundo e as outras formas de vida. Nesse espaço temporal, foi capaz até de reproduzir nossa arquitetura cerebral em microchips que comandam linhas de produção, armazenam trilhões de informações em nuvens, e nos interligam, a despeito de qualquer distância. Também ousou aventurar-se no Universo para além de nossa órbita terrestre.
Mas o Homo Sapiens, como bem nos descreve o historiador Yural Harari, quer mais. Promover-se à condição de Homo Deus. Se a felicidade constante e a imortalidade não foram de todo dominadas, já garantiu o controle de seu próprio substrato biológico. Ao manipular células e gametas, foi capaz de criar vida humana fora de um corpo, como Deus!
Inquieta, dando sequência as suas Reflexões Psicanalíticas sobre a Reprodução Assistida (2019), Renata Viola Vives divide conosco seus ensaios sobre Reprodução Assistida, Parentalidade e Adoção, e organiza uma nova coletânea com ensaios de importantes nomes do cenário psicanalítico latino-americano sobre seus trabalhos e questionamentos sobre esta temática. Além de ensaios da própria Renata Vives, este nome livro traz o pensamento de Gina Levinzon, Gley Pacheco Costa, José Galeano, Juliana Roberto, Kimberly Fernandes, Nathalia Vieira, Patrícia Alkolombre, Patrícia Gramacho e Sara Fagundes.
São textos sobre os diversos desdobramentos que a Reprodução assistida vem trazendo à nossa clínica psicanalítica cotidiana. O desejo de filho, desejo de quê filho, desejo de filho a que tempo, assim como o desejo de não filho, habitam campos fantasmáticos tanto de mulheres como de homens. A mulher segue gestando, mas o homem também deseja. Não há limites temporais, espaciais ou biológicos para que o Homo Deus satisfaça seus desejos.
Ah! Essa ânsia, essa fome do humano sempre frustrado e querendo subverter seus limites, o interditado. As tecnologias de reprodução Assistida quase tudo permitem. Mas, como os autores deste livro muito bem colocam, trazem consigo novas subjetividades (inclusive para os indivíduos desta forma gerados). Abordam também o impacto e repercussões destas técnicas sobre as novas formas de parentalidade, sobre questões éticas e bioéticas.
Aqui podemos também refletir sobre os caminhos de resolução para a infertilidade de um casal que antes passavam pela adoção de um filho já nascido, e que agora percorrem os caminhos da ovodoação. Surgem novas perguntas. Até quantos filhos espalhados pelo mundo poderá gerar um esperma-doador? A genética aqui reproduzida enquadra estes novos seres na categoria de meio-irmãos? E se estes sem saber sexualmente vierem a se relacionar, seria incesto?
Os autores lembram ainda que na reprodução assistida sempre haverá um terceiro intermediando o desejo de dois de um filho. Prazer sexual e prazer de gerar deixam de ser vinculadores. Agora nos é permitido gerar filhos até com nossas mães, por barrigas de substituição.
A coletânea ainda nos traz reflexões sobre o luto da descontinuidade genética nos casos em que óvulos ou esperma precisam ser de doadores. Passada a euforia inicial do sucesso do procedimento, surge o sentimento do estranho: Meu filho poderá até assemelhar-se a mim, mas nunca será como eu. E isto precisa ser falado, ser tratado. Também nas sessões de terapia aparece o drama do descarte de óvulos ou embriões congelados e não mais desejados, ou a ambivalência entre o desejo de repetir o processo assistido e o temor de um novo fracasso significado pelo abortamento espontâneo. Homens não gestam, não abortam, mas também precisam ser acompanhados neste processo.
E até mesmo o amor, o que é o amor? Amor enquanto fonte constante de prazer ou desprazer? O amor materno que sustenta o início da vida, nascido do desejo narcísico de ser eternamente correspondido, poderá ser sustentado se o corpo gerado é sentido como pedaços de outra ou de outro desconhecido? Como o Sapiens, do alto de sua racionalidade lidará com a falta de registros psíquicos que deem conta disso sem perder sua condição de pretenso Homo Deus? É com estas e outras mais vivências clínicas, inquietações e elaborações que os autores nos convidam à leitura desta obra. Uma aventura instigante!