Conversando sobre abuso moral

PATRÍCIA POERNER MAZERON – CRP 07/04714 – Psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica de adultos, casais e famílias.

 O que é Gaslighting?

Cada dia que passa chega a nossos consultórios mais casos de abusos
psicológicos do tipo Gaslighting. O que seria isto?
Este termo tem origem em uma peça de teatro de 1938 chamada Gas Light do escritor britânico Patrick Hamilton. Em 1944 foi transformada em filme com o nome Gaslight . Conta a história de um homem que tenta convencer sua esposa a acreditar que ela está enlouquecendo. Ele cria situações que deixa a esposa em dúvida sobre suas atitudes e percepções, fazendo-a acreditar que perdeu sua sanidade mental.

Muitas pessoas sofrem este tipo de abuso e nem percebem. Em boa parte das vezes ocorre por parte de um marido/companheiro com sua esposa, ou vice versa. Mas também podemos encontrar este tipo de abuso entre pais e filhos ou relacionamentos profissionais. Aqui iremos enfocar neste tipo de abuso contra mulheres.

GASLIGHTING é um tipo de abuso psicológico, em que o abusador distorce informações com o objetivo de confundir a vítima fazendo com que a mesma duvide de sua própria memória, percepção e sanidade. Desgasta a autoestima e autoconfiança da pessoa abusada a ponto de a mesma anular-se e transformar-se em uma pessoa cheia de dúvidas e medos.

Cláudia e Leonardo tem a mesma idade, 42 anos, casados desde os 20 anos.
Procuraram atendimento de casal por solicitação e insistência de Cláudia que trouxe a queixa que o marido não participa do convívio familiar. Eles têm dois filhos adolescentes que segundo o casal costumam brigar com frequência. Contam que as brigas do casal, dos filhos entre si e dos pais com os filhos costumam ser em tons altos e bastante agressivos. Referem que não há agressão física, mas todos costumam ser “cruéis com as palavras”. Nas consultas Cláudia conta que o marido a traiu em algumas ocasiões e que tentou separar-se cerca de dois anos antes do atendimento. Disse que o marido a ameaçou diversas vezes durante o período da separação e que em duas ocasiões fez boletim de ocorrência. “Fiz duas Marias da Penha contra ele. Mas depois retirei”. Neste período o marido não pagou pensão aos filhos, deixando a mesma e seus filhos passando dificuldades financeiras a ponto de ter que fazer restrições alimentares. Após um período (seis meses) o Leonardo desculpou-se com Cláudia e prometeu mudar de atitude. Voltou para casa e continuaram as brigas. 

Cláudia depende financeiramente do marido que é autônomo e trabalha com este. Nas sessões, enquanto a mulher fala, Leonardo fica mexendo em seu aparelho celular, parecendo distraído com o assunto. Eventualmente faz alguma interferência informando que a mulher está enganada e que as coisas não aconteceram da forma que relata. Quando Cláudia diz que ajuda o marido em seu trabalho, o mesmo costuma dizer que ela não faz quase nada, que não trabalha e mais reclama do que ajuda. “Às vezes, quando preciso que ela embale uns produtos ela faz tudo errado. Aí tenho que refazer tudo. Ela não faz nada o dia todo e ainda reclama quando peço ajuda eventualmente. Sustento a casa, ela e os filhos. Gostaria que ela me dividisse comigo as despesas que temos.” (Sic).

Cláudia é dona de casa e não tem empregada nem faxineira. Dizem que moram em uma casa grande de “quase 250 metros quadrados” e que não para ninguém para trabalhar lá. Segundo o casal as funcionárias não param lá por causa das brigas e gritarias da família.
Cláudia conta que engordou 20 kg nos últimos 04 anos e o marido a critica por ter se descuidado, enquanto o mesmo apresenta visível sobrepeso. Quando Cláudia comenta que o marido também engordou ele a culpa por fazer comidas sem cuidar com as calorias.

Este tipo de abuso é sutil e por não haver agressões físicas o abusado não percebe que está sofrendo de violência psicológica. Acredita no que o agressor diz quando seus pontos de vista são menosprezados e colocados em dúvida e isso aumenta a dificuldade de tomar consciência que está sofrendo algum tipo de agressão.
É muito eficaz do ponto de vista do agressor, pois pelo fato de o parceiro abusado emocionalmente questionar seus próprios sentimentos, percepções e ideias, o que comete o abuso adquire muito poder. A pessoa costuma sentir-se tão confusa que fica difícil para a vítima pensar em fazer uma denúncia.

Como toda relação abusiva, esta também inicia de forma gradual sem que se perceba e com o tempo, os padrões abusivos tendem a aumentar, podendo levar a vítima a se afastar dos amigos e familiares tornando-se, assim, cada vez mais dependente do abusador e a tendência é ficar capturado neste relacionamento com muita dificuldade de livrar-se dele. O abusador utiliza-se de técnicas que ataquem a percepção e vivência da(o) companheira (o), fazendo-a acreditar que aquilo que percebe ou vivencia não aconteceu.

Também pode inventar novas versões para os fatos confundindo a outra pessoa, a ponto de duvidar de si mesma. As frases que o abusador utiliza vão desde a negação dos fatos, como: “ Isso não aconteceu ”, “ Você não entende o que eu digo ”, “ pare de inventar histórias ”, passando pela banalização de sentimentos (“ Como você é exagerada ”, “ Pare de chorar, pois não tens motivo para isso ”), até a inversão de fatos ( “ Você começou
essa discussão sem motivo algum” , “ Porque gostas de iniciar as brigas? ”, “ Você quem começou a gritar ”). O agressor costuma ser bastante contundente em suas afirmações, fazendo com que a vítima acabe acreditando no que ele diz ficando constantemente em dúvida sobre o que percebe. O gaslighting tem consequências desastrosas na vida da pessoa abusada e podem gerar problemas sérios como depressão, isolamento, ansiedade e confusão mental.

Quando por vezes a vítima percebe que algo não está certo nesta relação, costuma esbarrar na incompreensão das pessoas a sua volta, pois devido à sutileza da situação não fica perceptível a terceiros. Muitas vezes, quando divide o problema com amigos ou familiares, estes dizem que a vítima está exagerando e quando tenta denunciar esbarra na falta de provas. Bárbara Zorrilla, psicóloga especializada em atendimento a mulheres vítimas de violência de gênero , diz:

“ O ABUSO GASLIGHTING É UMA FORMA DE VIOLÊNCIA MUITO PERVERSA, PORQUE É CONTÍNUA E SE CONSEGUE MEDIANTE O EXERCÍCIO DE UM ASSÉDIO CONSTANTE, MAS SUTIL E INDIRETO, REPETITIVO, QUE VAI GERANDO DÚVIDAS E CONFUSÃO NA MULHER QUE O SOFRE, A PONTO DE CHEGAR A SE SENTIR CULPADA DAS CONDUTAS DE VIOLÊNCIA DO
ABUSADOR E DUVIDAR DE TUDO QUE ACONTECE À SUA VOLTA .”

Em algumas situações a pessoa abusada pode chegar a pedir desculpas ao abusador por acreditar que tenha sido a única causadora do conflito. Quando chegam aos consultórios, na maioria das vezes não percebem que estão sofrendo maus-tratos. As pessoas chegam com as queixas de estarem cansadas, anuladas e desanimadas. Com o tempo, falando de seus problemas, percebem que passam boa parte do tempo se defendendo tentando fazer valer seus pontos de vista, mas não conseguem. As discordâncias que surgem causam constantes discussões e desgastes, deixando a vítima sem forças, duvidando de seu próprio julgamento e fazendo aumentar o seu sentimento de desvalia. Esse sentimento é incrementado pelo discurso do agressor quando o mesmo faz a vítima acreditar que a única chance de ser feliz é ao seu lado.

Para superar esta situação é necessário em primeiro lugar tomar consciência de que está sofrendo maus tratos e reconhecer os sinais. De acordo com o psiquiatra Robin Stern os sinais que uma pessoa está sendo vítima de GASLIGHTING:

1- Duvida de si mesma constantemente;
2- Pergunta-se se é “ sensível demais ” várias vezes ao dia.
3- Constantemente sente-se confusa ou mesmo maluca;
4- Está sempre pedindo desculpas ao seu (sua) parceiro(a);
5- Não entende por que, com tantas coisas aparentemente boas na vida, não se sente mais feliz;
6- Frequentemente cria desculpas para justificar o comportamento do(a) parceiro(a) para seus amigos e sua família (ou até para si mesma/o);
7- Começa a esconder informações dos seus amigos e da sua família para que não tenha que explicá-las ou inventar desculpas;
8- Sabe que algo está muito errado, mas nunca consegue expressar exatamente o que, nem para si mesma;
9- Começa a mentir para evitar as distorções da realidade e ser posta(o) para baixo;
10- Tem dificuldade para tomar decisões aparentemente fáceis;
11- Sente que no passado, costumava ser uma pessoa muito diferente – mais confiante, mais divertida, mais segura e mais relaxada;
12- Se sente sem esperança e desanimada;
13- Sente que não consegue fazer nada certo;
14- Pergunta-se se é um(a) parceiro(a) suficientemente bom(a).

Nos casos de homens vítimas deste tipo de maus-tratos fica mais difícil de ser percebida a violência. Eduardo chegou contando que se sentia fraco para dar conta da sua família. Possui curso superior, empresário, casado e sua esposa sofre com uma doença crônica que a impede de trabalhar. Ele tinha que cuidar dos negócios, das responsabilidades domésticas e dos cuidados com o filho pequeno. Refere ter dificuldades em manter relacionamentos sexuais com a esposa por recusa da mesma. Na segunda consulta contou-me sorrindo que a sua mulher tinha um amante que encontrava com uma frequência semanal. Quando questionei o que achava disso, respondeu-me que ficava aliviado quando a mesma encontrava seu amante porque voltava para casa mais “ calma ”. 

Costumava justificar as queixas e atitudes da esposa. A esposa reclamava com frequência do marido e da vida que ele proporcionava. Em alguns momentos chegou a agredi-lo fisicamente até o dia que o mesmo chegou em casa e encontrou suas roupas destruídas pela esposa, que alegou ter feito isso porque o marido não atendeu suas ligações enquanto o mesmo trabalhava. Neste momento Eduardo resolveu sair de casa e aos poucos foi tomando consciência da situação que se encontrava. Precisou que a mulher cortasse suas roupas para que tomasse uma atitude, pois até aquele momento não percebia que sofria violência.

Como sair desta situação? Muitas mulheres e muitos homens quando reconhecem o sofrimento e que o mesmo está sendo causado pelo tipo de relação que se encontram e mesmo assim não conseguem ver um caminho de livrar-se dessas amarras, devem procurar ajuda de profissionais.

“RECONHECER A VIOLÊNCIA, SOB TODAS AS SUAS FORMAS, É MUITO IMPORTANTE. MELHOR, PORÉM, É RECONHECÊ-LA DESDE OS PRIMEIROS SINAIS, POIS A ESCALADA É UMA DE SUAS CARACTERÍSTICAS. COMPREENDÊ-LA É A MANEIRA DE SE LIBERTAR: COMPREENDER COMO SE ORIGINA, COMO SE INSINUA, INSIDIOSA, SOB UMA APARÊNCIA INOCENTE, MAS QUE VAI SE INSTALANDO GRADATIVAMENTE ATÉ DEFORMAR POR COMPLETO RELAÇÕES QUE SE SUPUNHAM OU SE DESEJARIAM HUMANAS. APRENDER A PERCEBER SUAS DIFERENTES FORMAS DE MANIFESTAÇÕES, SEUS MOTORES OU DETONADORES E COMPREENDER SEUS PROCESSOS E MECANISMOS É A ÚNICA MANEIRA DE SE DEFENDER.” (MARIA HELENA KÜHNER IN A VIOLÊNCIA DO CASAL – DA COAÇÃO PSICOLÓGICA À AGRESSÃO FÍSICA)

Referências

https://www.geledes.org.br/14-sinais-de-que-voce-e-vitima-de-abuso psicologico-o-gaslighting/
https://www.merriam-webster.com/dictionary/gaslight