As diversas faces do Desejo nos Tratamentos de Reprodução Assistida

Artigo escrito pelas psicanalistas Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazerom e Renata Viola Vives

Na busca pela Reprodução Assistida vemos, por vezes, pacientes recorrendo à tecnologia de forma quase irracional, chegando a dispor, para isso, não só de todo o montante de seus bens materiais, mas também da integridade física do próprio corpo.

Joana tem 44 anos. Fez quatro fertilizações in vitro, com doação de sêmen, porque desejava ser mãe. Não obteve sucesso. Estava encaminhando-se para o quinto procedimento, quando foi internada às pressas. Estava com colesterol altíssimo, com problemas renais e no fígado devido à sobrecarga de medicamentos. Entrou em coma. Quase morreu, porém relata que em nenhum momento deu-se conta da gravidade da situação, pois só tinha em mente “ser mãe”. Atualmente, em parte recuperada dos problemas de saúde, pensa em adotar uma criança para alcançar seu objetivo.

Para Maldavsky (2000) o corpo é uma unidade complexa, sendo possível precisar sua função e sua eficácia na constituição, desenvolvimento e atividade da vida anímica e nos processos subjetivos. Em primeiro lugar, o corpo tem valor de fonte química da pulsão e também de objeto da mesma; também funciona como estrutura que processa as excitações das fontes pulsionais. Essa estrutura carrega um saber filogenético, que é inerente à espécie e que predetermina certas orientações universais na vida psíquica. Por último, o corpo é o lugar de diversas ações com as quais se pretende tramitar as exigências endógenas. O corpo também pode sofrer alterações como consequências dos conflitos, sobretudo as somatizações.

É na superfície corpórea e por suas sensações de prazer e desprazer, que Freud (1905) definiu as zonas erógenas, sendo que a constituição de uma zona erógena requer processos projetivos e de excitações periféricas.

Para Maldavsky (2000) as erogeneidades oral, anal e uretral são ordenadoras de um conjunto vasto de outras sensualidades, sensorialidades e motricidades de caráter ativo ou passivo. A tudo isso se agrega a erogeneidade fálica, possivelmente a única não acoplada a autoconservação. Por fim, também se juntará a isso uma erogeneidade genital, que implica um desempenho na conservação da espécie.

A pulsão de conservação da espécie, que se liga com a erogeneidade fálico-genital, quando sobrevêm as mudanças da puberdade, pode estar a serviço de neutralizar a pulsão de morte. Ela predetermina o valor de cada erogeneidade no marco da reprodução e reúne em torno da autoconservação e da sexualidade um saber filogenético. Essa pulsão pode entrar em luta com alguma pulsão parcial, bem como pode entrar em conflito com a pulsão de autoconservação, quando a procriação resulta numa ameaça direta ou indireta à própria vida. Sobretudo, a pulsão de conservação da espécie se opõe a pulsão de morte, onde já não se trata de preservar uma vida singular e sim de preservar a espécie, da qual cada corpo é um representante.

Lembremos também que para o mesmo autor a libido pode ficar fixada a uma fase inicial do desenvolvimento e, portanto, investir duramente os órgãos internos, criando processos tóxicos.

A substituição do princípio do prazer-desprazer pelo do masoquismo como orientador da sexualidade leva a uma estase da pulsão, seja da sexualidade ou da autoconservação, ou ambas ao mesmo tempo. A estase é entendida como a impossibilidade de tramitação psíquica, sobretudo orgânica, para uma erogeneidade dada. Se a estase afeta o narcisismo, de acordo com Freud, podem dar-se manifestações hipocondríacas; se, diz respeito à libido objetal, surgem sintomas de neurose atual. A questão que se apresenta é que essas experiências podem ou não ser reprocessadas psiquicamente e podem ter um caráter transitório ou duradouro. Por vezes irão surgir estados de angústia automática, atribuídas ao desvalimento psíquico ante a pulsão sexual.

Maldavsky (1994), quando propõe as “patologias do desvalimento”, coloca que essas pessoas carecem de uma vida fantasmática, e que essa carência simbólica se traduz por uma falha no registro dos afetos e conseqüentemente o empobrecimento da subjetividade. A raiz disso, ainda segundo o autor, seriam falhas estruturais ocorridas nos primórdios da vida do sujeito, onde sua economia pulsional está voltada para manter o equilíbrio das funções orgânicas basais (temperatura corporal, freqüência cardíaca, freqüência respiratória, etc.). Ou seja, uma época regida pela demanda (corporal) anterior ao desejo. O autor diz que a satisfação dessa demanda e manutenção do equilíbrio homeostático depende de um ambiente empático e continente ao sujeito. Havendo falha nesta função do ambiente, o ego primitivo do bebê fica a mercê de um “quantum” de energia que é incapaz de processar, levando ao traumático (por excesso) e a um “transbordamento” dessa energia para o corpo, que é então tomado como objeto de catexia da pulsão. Maldavisky (2000) nomeia essa fase de fase libidinal intrassomática, onde a libido está a serviço do equilíbrio orgânico.

Scherer et al. (2013) coloca que pacientes desvalidos são desprovidos de uma demanda psíquica e geralmente chegam a tratamento por questões clínicas, ligadas ao corpo. Postulam que a defesa característica da fixação à fase libidinal intrassomática é a desestimação do afeto, podendo estar associado também a desestimação da realidade e/ou instância paterna e a desmentida, o que caracteriza então os quadros de desvalimento. É o fracasso de um desses mecanismos de defesa que levaria a algum desequilíbrio orgânico, que gera então a busca de algum tipo de tratamento clínico.

Freud em 1894 já apresentava a ideia de uma defesa muito mais poderosa e bem-sucedida, onde o ego rejeitaria a representação incompatível, juntamente com seu afeto e se comportaria como se a representação jamais tivesse existido.

Essa busca desmedida, que não observa nem mesmo os limites da própria saúde corporal, faz questionar seu fim em si, que é a gestação e o futuro bebê. O que se observa, é que o bebê imaginário aparece muito pouco neste cenário, quase ausente no discurso, que é pontuado por ecografias,

medicações, exames laboratoriais e prazos. Isso leva ao questionamento se haveria um suporte simbólico sustentando essa busca, que não respeita nem mesmo a própria integridade corporal do sujeito, podendo levar até a morte em nome da vida.

Perpassando pelas diversas faces do desejo, nos deparamos com o desejo narcísico, com o desejo edípico e nos questionamos sobre que desejo, se é que poderíamos chamá-lo assim, sustenta esta busca por um filho a qualquer preço e a qualquer custo, colocando à própria vida em risco?

Seria possível inferir que algumas das mulheres inférteis que buscam reprodução assistida possam fazê-lo movidas não por um desejo, mas por uma demanda – necessidade (orgânica) característica da fixação intrassomática, busca esta, ligada a descarga pulsional somática, onde o corpo é o objeto da pulsão, que é levado até a exaustão? Ou a busca por tratamentos de reprodução assistida que chegam a por em risco o autoconservativo tem como motivação primordial a conservação da espécie, ou seja, isso que se encontra inscrito em cada um de nós, filogeneticamente?

Na tentativa de apreender a motivação que impulsiona a mulher na busca pela maternidade talvez nos escape ou neguemos, uma “ordem interna” que possa estar intimamente imbricada nesta busca. Nos referimos aqui a algo relacionado ao inato.O homem antes de tudo é um ser biológico.

Se pudermos pensar que em uma situação hipotética de extremo estresse e risco de vida, todos os preceitos éticos e morais do indivíduo ficam abalados, levando-o a agir de forma irracional para manter a própria sobrevivência ou de sua espécie, não temos como negar que também somos guiados por forças instintivas que não domamos.

É possível pensarmos que talvez estejamos negligenciando estas forças e mandatos filogenéticos, relacionados à maternidade e perpetuação da espécie.

Estes são questionamentos que levantamos e seguimos a pensar a partir da teoria e da clínica.

Referências Bibliográficas:

Freud, S. (1894) As Neuropsicoses de defesa.In: _______Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Std.RJ: Imago, 1974.V.I.

Freud,S. (1895) Projeto para uma Psicologia Científica. In: __________Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Std. RJ: Imago, 1974. V.I.

Maldavsky, D. Pesadillas em vigília. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.

Maldavsky, D. Lenguaje, pulsiones, defesas. Buenos Aires: Nueva Vision, 2000.

Scherer, C. etal. Des- Afetos: pensando as patologias do Desvalimento. In: Psicanalise- Revista da Sociedade Brasileira de Psicanalise de Porto Alegre: vol.14, n.2, 2013.